Reinício de temporada. A linha de montagem retoma o seu ritmo frenético. Em dois ensaios uma partitura como o Réquiem de Verdi é lida, ficando pouca coisa a acertar nos dias seguintes.
O público em geral tem uma visão um tanto romântica e bucólica da atividade diária de um músico profissional. Fala-se muito em inspiração, talento, dom, e outros conceitos um tanto vagos para definir o que um músico faz para chegar ao resultado final apresentado no palco. Alguns poucos associam técnica e precisão ao que o músico faz no seu dia a dia. Quase ninguém se lembra de associar disciplina e produção ordenada à música.
Gosto de comparar nossa atividade a uma linha de montagem bem ao estilo fordista. Não vejo nisso uma virtude, apenas constato que até mesmo a expressão artística, tão idealizada durante o século dezenove, se rendeu à era industrial.
As artes e nelas incluída a música, conquistaram um status de Arte com “A” maiúsculo deixando de serem vistas como produtos de artesãos. Isso aconteceu desde o final do século XVIII quando compositores como Haydn viviam numa condição de criados especializados sob a proteção de uma aristocracia que via a música e as artes como mais um dos atributos necessários a sua condição. A tentativa de emancipação esboçada por Mozart, que simplesmente deu as costas ao seu senhor em Salzburg para tentar uma carreira autônoma em Viena pode ser vista como um marco na transição do artista “artesão” para o Artista autônomo. Esse gesto foi aliás representado de forma emblemática por Millos Forman no seu Amadeus quando Mozart a deixar o salão do Arcebispo de Salzburg faz-lhe uma profunda reverência às avessas mostrando-lhe o traseiro.
A emancipação de fato viria com Beethoven, mas mesmo ele não podia ficar alheio à aristocracia, por isso mesmo alimentou por muito tempo os rumores sobre sua suposta origem nobre, mas aí se tratava justamente de afirmar a sua condição de igualdade e até mesmo de superioridade em relação à classe dominante.
O fato é que estimulados pelas biografias de músicos como Mozart e Beethoven nas quais aprendemos a ver a figura do gênio, passamos a ver a criação musical como algo inexplicável e, por isso mesmo, só atribuível ao gênio. Poucas pessoas param para pensar no treinamento intensivo e até mesmo desumano a que esses “gênios” foram submetidos desde a primeira infância.
Mas a verdade é que a grande massa dos músicos profissionais permanece naquilo que podemos chamar de arte de artesão preocupando-se em repetir uma série de movimentos cuidadosamente estudados que irão levar a uma produto final bem acabado dentro das especificações necessárias.
Quando o ritmo de produção aumenta podemos chegar a algo parecido a uma linha de montagem industrial. Normalmente até nos orgulhamos disso e não estamos errados. Poder por de pé uma obra de grande envergadura em poucos ensaios e até mesmo fazer isso com três ou quatro grandes obras simultaneamente não pouco. Mas, se por um lado conquistamos a possibilidade de produzir em quantidade sem perder qualidade, por outro o automatismo acaba por se sobrepor a criação.
Manter esse ritmo frenético mantendo também aquela chama acesa dentro de cada um é, sem dúvida, o maior desafio que temos pela frente.
domingo, março 12, 2006
quinta-feira, março 02, 2006
Assinar:
Postagens (Atom)